Doutorado
PROGRAMA PROJETO IN LOCO: Urbanismos performativos em ação
Bárbara Silva da Veiga Cabral
Como (des)programar os chãos do urbano? Pode o urbanismo, em conversa com a arte da performance, ser campo de invenção de outros modos de programação de cidade, para além dos já estabelecidos e em busca de construções mais diversas, dissensuais e desejantes?
Inserido em uma pesquisa teórico-prática continuada que teve início em 2018, este projeto busca repensar modos de fazer e agir cidades, entre arquitetura, urbanismo e performance, a partir de uma palavra-conceito que coincide nos três campos: programa. Durante meu mestrado em Artes da Cena na UFRJ,[1] foram identificados alguns modos de operação do programa na arquitetura e no urbanismo (do século XVIII ao XXI) – exercício fundamental para uma reflexão sobre práticas de projeto, já que o programa é um de seus mais aplicados conceitos e visto que programas operam discursos, são políticos e duram; sobretudo quando monumentalizados. Em atenção às questões ético-estético-políticas levantadas, propomos que um outro modo seja agenciado enquanto prática de projeto e fazeção urbana: o do “programa performativo”, conceito da performer e teórica da performance Eleonora Fabião. Programas performativos são definidos por Fabião (2013, p. 1) como enunciados que descrevem as ações a serem realizadas em performance. Escritos de modo conciso, com verbos no infinitivo, eles disparam experiências.
É dessa proposta que emerge a hipótese desta pesquisa: que a ação de programas performativos é uma possível e potente prática urbanística. Investigando como programas performativos podem transformar modos de agir e pensar cidades, de maneira a desenvolver outras metodologias de projeto urbano que tenham como base procedimentos da arte da performance, ou seja, de artes de ação nos espaços públicos, esta pesquisa se desdobrará por meio de práticas corporalmente implicadas e atentas a materialidades e processos cotidianos, na contramão de cidades que parecem cada vez mais reguladas e de experiências corporais urbanas programadamente atrofiadas – ou “desencarnadas”, como descreve a urbanista pesquisadora Paola Berenstein Jacques (2009, p. 338 e 340).
Fato é que a prática performativa possibilita projetar com o corpo todo – não mais e apenas dos braços para cima. Em performance, projetos implicariam corpos com matérias e corpos outros; não sobre eles ou deles apartados. Como no programa performativo piloto desta pesquisa, enunciado de um projeto in loco que agencia uma espécie de escritório portátil, incorporado:
“Vestir-se de maneira confortável, separar materiais de desenho, trena, tesoura, fita crepe. Portar uma bolsa com tais materiais e uma prancheta portátil. Dirigir-se ao sítio de projeto. Buscar, com o lugar,[2] posições, encontros, apoios e modos que possibilitem um processo de projeto. Dar início à atividade de projetar – realizada somente ali.”
Este programa urbano-performativo, que busca aprender com as relações de companhia que estabelece com as matérias e fluxos já presentes no urbano, desloca o corpo de quem projeta para o campo de quem constrói e vive o espaço – de modo que a posição de projetista se desdobre da mente criadora para um corpo inteiro; afetante e afetado, fazedor e feito pela cidade. Nesse sentido, o PROJETO IN LOCO, portátil e itinerante se estabeleceria enquanto um entre: turbilhão resultante do encontro entre mente e mãos treinadas para a concepção espacial e sua experiência corporal, de interação radical com o lugar.
Pensado como prática piloto do Laboratório Urbano-Performativo (LUP) que pretendemos formar, composto por um pequeno grupo de estudantes/arquitetas/urbanistas/artistas interessadas em experimentar a operação do (des)programa (i.e., do programa performativo enquanto prática projetual urbana), PROJETO IN LOCO busca inaugurar em Salvador uma espécie de ateliê itinerante que inclui outras metodologias de estudo e ação na rua.
Contaremos com um referencial multidisciplinar, de base pós-estruturalista (já que o conceito de Fabião se baseia no pensamento rizomático de Deleuze e Guattari e já que a intenção é operar pela imanência dos chãos do urbano) em diálogo com teorias e práticas performativas contemporâneas (que englobam Fabião, Erika Fischer-Lichte, Thiago Florêncio, Priscila Rezende, Guga Ferraz e Paulo Nazareth) e urbanísticas (que incluem as propostas por urbanismos mais incorporados de Jacques, a inventividade programática de Bernard Tschumi, historiografias do programa e as disputas narrativas evocadas por Gabriela Leandro Pereira), com a filosofia política de Hannah Arendt, o pensamento topo-arqui-coreográfico de André Lepecki e suas relações com a “política do chão” de Paul Carter (apud Lepecki, 2012, p. 47) – “um atentar agudo às particularidades físicas de todos os elementos de uma situação, sabendo que essas particularidades se coformatam num plano de composição entre corpo e chão chamado história” – e, penso eu, chamado também cidade.
Nesse sentido e a partir das reflexões que emergem de minha prática enquanto urbanista-performer, trabalharemos por uma espécie de urbanismo imanente e do chão (contrapondo a usual predeterminação de usos), cujas programações performativas nos convidem a estar em companhia com as coisas, em detrimento de sua exploração. Perspectivas antiantropocêntricas[3] e decoloniais serão aliadas nesse processo, na medida em que emancipam corpos e matérias das lógicas de uso trabalhadas, por exemplo, em programações estritamente funcionais. O artigo Sobre diferença sem separabilidade de Denise Ferreira da Silva (2016, p. 59), que se opõe à “gramática racial” dura e segregacionista herdada da lógica moderna, é uma importante referência em direção à “mudança radical no modo como abordamos matéria e forma”, chamado que faz por um “programa ético-político que não reproduza a violência do pensamento moderno”, tarefa necessária na imaginação de sociabilidades fundamentadas na diferença, ativamente antirracistas e antiantropocêntricas.
Notas
[1] A dissertação intitulada URBANISMOS DO CHÃO: o programa performativo nas fazeções urbanas, defendida em agosto de 2021 e que teve orientação de Elizabeth Motta Jacob e Caio Arnizaut Riscado no PPGAU-UFRJ, foi posteriormente transformada em livro sob o título URBANISMOS DO CHÃO: programa, performance e cidade (2022), com orelha de Eleonora Fabião.
[2] “Lugar”, neste programa, se refere a todos os corpos que o compõem, humanos ou não.
[3] Contra a noção de que o ser humano é centro do mundo e seu proprietário, a partir da qual a humanidade subjuga qualquer existência que considere não humana – para Ferreira da Silva (2016, p.59), “mais-que-humanos”.
Referências
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2007.
DA SILVA, Denise Ferreira. Sobre diferença sem separabilidade. catálogo da 32a Bienal de Arte de São Paulo, “Incerteza viva”, 2016.
FABIÃO, Eleonora. Programa performativo: o corpo-em-experiência. ILINX – Revista do LUME, v. 1, n. 4, p. 1–11, 2013.
FLORÊNCIO, Thiago. De quem te protege a muralha? Rio de Janeiro: Editora Temporária, 2017.
JACQUES, Paola Berenstein. Zonas de Tensão: em busca de micro-resistências urbanas. In: BRITTO, Fabiana Dultra (ORG); JACQUES, Paola Berenstein (ORG). Corpocidade: debates, ações e articulações. Salvador: EDUFBA, 2009. p. 106–119.
LEPECKI, André. Coreopolítica e Coreopolícia. Ilha Revista de Antropologia, Florianópolis, v. 13, n. 1,2, p. 41–60, 2012.
PEREIRA, Gabriela Leandro. Corpo, discurso e território: a cidade em disputa nas dobras da narrativa de Carolina Maria de Jesus. Tese (Doutorado) – Faculdade de Arquitetura, Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, 2015.
TSCHUMI, B.; KOOLHAAS, R. 2 Architects, 10 Questions on Program. Rem Koolhaas and Bernard Tschumi: Questions written by Ana Miljacki, Amanda Reeser Lawrence, and Ashley Schafer. PRAXIS: Journal of Writing + Building, n. 8, p. 6–15, 2006.
Palavras-chave: Urbanismo. Performance urbana. Programa performativo.
ORIENTADORA
Paola Berenstein Jacques
PERÍODO
2023-atual