Mestrado

Sujeito, urbanidade e canção: as redes de subjetividade a partir das canções de Caetano Veloso e Tom Zé do período de 1968–1979

Eloisa Marçola Pereira de Freitas

Esta pesquisa emerge de questões relacionadas ao urbanismo, à história das cidades, à música popular, à poesia cantada, ao sujeito, ao habitante da cidade. Propõe-se uma desconstrução da visão de cidade sob sua perspectiva disciplinar – o urbanismo –, o qual, na contemporaneidade, por vezes visa uma lógica homogênea de constituição das cidades, ignorando a multiplicidade de seus pertencentes, estando, predominantemente, ligada aos interesses do capital, sejam eles em formato imobiliário, político, turístico, empresarial, entre outros. A análise proposta parte da premissa de que as cidades, assim como o ser humano, se constituem e reconstituem por redes de subjetividades e práticas, que estão constantemente em movimento e, assim, sendo reformuladas incessantemente.

Quando se fala em subjetividade é preciso pensar em algo diverso, heterogêneo e complexo em suas conexões. O sujeito se constitui através de uma experiência íntima e não descolada das relações com o mundo.

“Ao nascer, o homem é inserido em uma ordem humana que lhe é anterior, uma ordem social na qual ele adentra através da linguagem e da família. Assim, a história do sujeito o antecede por um mito familiar que passa a recobri-lo a partir de seu nascimento e através da linguagem – linguagem que é, em essência, sempre equívoca e passível de múltiplas interpretações”. (TOREZAN; AGUIAR, 2010, p. 533)

Desta forma, o sujeito é sempre visto como um corpo-no-mundo, empurrado e constituído pelo outro. Nesse lugar, inacabado entre as interferências internas e externas, que se inventa uma experiência humana singular. Lacan demonstra isto no Seminário “A Angústia” (1963) e utilizando a “Banda de Moébius”* nos convida a colocar o imaginário pelo avesso. Assim, demonstra que a subjetividade é um devir, e está aberta às interferências, se constituindo no momento presente nesse eterno devir-outros.

A partir dessa compreensão, pensa-se a cidade. Ora, se o sujeito é constituído em um a priori de si mesmo, então a cidade também é um impulsionador desta subjetivação; entretanto, ao mesmo tempo este sujeito, individual e coletivamente, é quem constitui as cidades. Daí a dialética “é a cidade que habita os homens ou são eles que moram nela?”** tem fundamental importância para a compreensão de cidade proposta nesta pesquisa.

Nos deparamos hoje com cidades cada vez mais dominadas por processos de homogeneização. Na crença de que exista um padrão urbano a ser seguido se engessa a cidade, não por acaso a sociedade tem se tornado cada vez mais desconectada de sua história, tal engessamento urbano reverbera em um distanciamento entre sujeito e lugar, podendo potencializar a característica de individualização e alienação da modernidade e pós modernidade apontada por Jameson (1985). Por que, na subjetividade humana, “aprisionar” as cidades, se o ser humano tem como características ambivalências e singularidades em constante movimento de reconstituição subjetiva?

Ítalo Calvino (1990, p. 24) traz que “uma paisagem invisível condiciona a paisagem visível”. Entende-se que as paisagens invisíveis são toda a rede de signos que se traz da constituição enquanto sujeito, a cada novo olhar sobre a cidade, projeta-se ali as referências de todas as outras cidades já vivenciadas, e ainda, de tudo o que se contou sobre esse “novo” lugar, das fotografias, da poesia, dos cheiros, das narrativas, das músicas.

Para esta pesquisa, volta-se à música como narrativa estética de cidade. E a música, analisada aqui em sua forma canção, é algo que interfere diretamente na subjetividade humana, ela rege a cultura de cada povo.

“…a canção é uma expressão artística que contém um forte poder de comunicação, principalmente quando se difunde pelo universo urbano, alcançando ampla dimensão da realidade social. […] a canção e a música popular poderiam ser encaradas como uma rica fonte para compreender certas realidades da cultura popular e desvendar a história de setores da sociedade pouco lembrados pela historiografia”. (MORAES, 2000, p.204)

Trata-se de buscar na canção popular diferentes perspectivas sobre um mesmo lugar, uma mesma cidade. Pretende-se colocar a contrapelo o urbanismo, e é através da canção popular que se busca encontrar esse outro olhar, essa fenda, esse apontamento crítico de cidade/história/política. Se voltar, assim, ao entendimento e à formatação do ser humano em sociedade enquanto agente ativo nas transformações urbanas. Considera-se, então, que colocar em relação música, cidade e sujeito resultará, sob ampla perspectiva interdisciplinar, um fecundo exercício de possíveis cenários de coexistência.

Como a música, em sua composição sonora e poética, pode abrir uma fissura de ressignificação do espaço urbano? Como, através da poesia cantada, entender os apontamentos críticos sobre a relação de homogeneização das cidades, e sua contribuição para a formação de uma “consciência heterológica”*** de cidade? De que forma a narrativa musicada coloca em existência urbanidades distintas e constroem modos de vida urbana? Existe nas canções a relação de uma experiência urbana partilhada?

Pensando sob tais inquietações teóricas volta-se para as cidades brasileiras de São Paulo – SP e Salvador – Ba, entre os anos de 1968 e 1979, por meio das composições de Caetano Veloso e Tom Zé. Serão analisados oito álbuns: Grande Liquidação (1968), Se o Caso é Chorar (1972), Todos os Olhos (1973), Correio da Estação Brás (1978), de Tom Zé; Jóia (1975), Muitos Carnavais (1977), Muito – Dentro da Estrela Azulada (1978), e Cinema Transcendental (1979), de Caetano Veloso. Além disso, os livros e narrativas memorialistas, “Verdade Tropical” de Caetano Veloso e “Tropicalista Lenta Luta” de Tom Zé, embasarão as análises das canções, auxiliando em sua compreensão histórica contextual.

Tais escolhas se deram pois ambos os compositores saem de Salvador, vindos do interior da Bahia, e chegam no Sudeste, mais precisamente em São Paulo. A lógica metropolitana de São Paulo, quando comparada com a capital baiana – que carrega, ainda hoje, resquícios de uma província -, impacta em sua grandiosidade, na priorização do capital, entre outras características da capital paulista. Além disso, o recorte temporal se trata de um período de intensa represália, pois se estava sob o regime da ditadura militar, pós ato inconstitucional AI5 (1968-1978), o qual tem por característica principal ser a expressão mais dura da ditadura. Também é um período que sucede a Tropicália (1967-1968), movimento artístico que se colocava de forma radical para desestabilizar a imposição burguesa de padrões de vida, e pôs em existência o popular, a massa, a vida cotidiana sem restrição ou distinção, questionando o conservadorismo e a tradição. Neste contexto, compreender como essas duas cidades são apontadas, friccionada, tensionadas, postas em evidência na canção dos compositores, e, a partir de aí, criar uma reflexão destas urbanidades.


Notas

* Figura topológica criada pelo matemático e astrônomo August F. Moébius em 1858, quem demonstra que uma superfície permanece invariante quando sofre uma deformação contínua, não distinguindo a noção de opostos/avessos, se subverte em uma superfície unilátera.

** Título do artigo de Nelson Brissac Peixoto e Paulo Sérgio Rouanet. Ver em PEIXOTO, Nelson Brissac; ROUANET, Sérgio Paulo. É a Cidade que Habita os Homens ou são Eles que Moram Nela?: História Material em Walter Benjamin “Trabalho das Passagens”. São Paulo: Revista USP, set./out./nov. 1992, p.48-75.

*** Segundo Washington Drummond, pela ótica do conceito batailliano, a heterologia é um conceito paródico que ironiza os sistemas fechados, equilibrados, que buscam a perfeição na substancialização das formas; sendo uma espécie de resíduos, restos não assimiláveis, por vezes abjetos, que rompem com as composições homogêneas, marcadas pela inexorabilidade. Ver Washington L. L. Drummond, “A Escrita Literária: Heterologia, Despesa e os Dispositivos Estatais”, in anais do XIII Congresso Internacional ABRALIC, Campina Grande, UEPB/UFCG, 2013. .


Referências

CALVINO, Ítalo. As Cidades Invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

DRUMMOND. Washington L.L. Heterologia e Sujeito em Georges Bataille. In: MIRANDA, Juliana A. S. (Org.) O que pode a Literatura?. Alagoinhas: Bordô-Grená, 2018. pp.83-100.

JAMESON, Fredric. “Pós-modernidade e Sociedade de Consumo”. Revista Novos Estudos CEBRAP. São Paulo: n°12, pp.16-26, jun.1985.

MORAES, José Geraldo V. “História e Música: Canção Popular e Conhecimento Histórico”. Revista Brasileira de História. São Paulo: vol.20, n.39, março/2000. .

PEIXOTO, Nelson Brissac; ROUANET, Sérgio Paulo. “É a Cidade que Habita os Homens ou são Eles que Moram Nela?: História Material em Walter Benjamin ‘Trabalho das Passagens’”. Revista USP. São Paulo: set./out./nov. 1992, pp.48-75.

TOREZAN, Zélia C. F.; AGUIAR, F. “O Sujeiro da Psicanálise: Particularidades na Contemporaneidade”. Revista Mal Estar e Subjetividade. Fortaleza: vol.11, n.2, pp. 525 – 554, 2011.


Palavras-chave: História da cidade. Canção. Sujeito. Música.


ORIENTADORA

Margareth da Silva Pereira


COORIENTADOR

Washington Drummond


PERÍODO

2020-atual